- Entrevistas
A inteligência nos permite pensar, raciocinar, criar, comunicar. Por meio dela adquirimos conhecimentos nas mais variadas disciplinas e nos tornamos capazes de resolver os mais complexos problemas. Ao compreender suas nuances e possibilidades, encontramos inspiração para construir novos sistemas e realidades. Vivemos na Era da Transformação Digital e a Inteligência Artificial (IA) é uma das principais protagonistas dos novos tempos.
Para refletir sobre essa mudança de paradigma, convidamos o Prof. Dr. Luís Lamb, Secretário de Inovação, Ciência e Tecnologia do Estado do Rio Grande do Sul e pesquisador de Inteligência Artificial e Machine Learning há mais de duas décadas. Formado em Ciência da Computação pela UFRGS, tem Mestrado (UFRGS) e PhD (Imperial College London) em Computação, além de certificados Executivos do MIT em Gestão e Liderança e em Estratégia e Inovação. Antes de assumir a Secretaria, Lamb foi pró-reitor de pesquisa e professor na UFRGS.
SoftDesign – Como começou a sua jornada com a computação e a tecnologia?
Luís Lamb – No final dos anos de 1980, a computação era vista como uma área de grande potencial, visto que começávamos a perceber a utilização de computadores pessoais nas casas. Além de uma penetração cada vez maior de computadores em empresas, devido ao processo de digitalização dos negócios. Profissionalmente falando, essa área também era sinônimo de alto potencial e de crescimento futuro.
No Brasil, embora o conhecimento em computação fosse pequeno nessa época, nos meios acadêmicos a área tinha destaque. Tanto que o curso de Ciência da Computação chegou a ter o vestibular mais concorrido da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ficando na frente até mesmo do curso de Medicina. O boom e a visibilidade que a Ciência da Computação alcançou no final dos anos 1980 foi realmente impactante para a minha geração.
Estava claro que o futuro seria baseado em tecnologia. Logo, em 1990, com o surgimento da World Wide Web, a computação de fato começou a acelerar mundo afora. Foi nesse período que foram criados os primeiros sites e domínios, onde empresas compartilhavam informações de forma mais acessível, por meio de interface com imagens, vídeos, áudios, textos, links e até mesmo conexões com outros sites de interesse.
Muitas pessoas passaram a utilizar computadores e essa trajetória acompanhou o desenvolvimento da computação. Nos últimos 30 anos, o setor sempre registrou um crescimento anual, seja em maior ou menor escala. Pensando nisso, eu acredito que as pessoas que investiram nesse setor tiveram um acerto em termos de carreira profissional. Atualmente, percebemos que áreas como Inteligência Artificial e Ciência de Dados também vieram para impactar o comportamento da sociedade e estão causando uma mudança significativa no paradigma econômico.
SD – A sua escolha por Ciência da Computação se deu pelo destaque e pela possibilidade de crescimento da área?
LL – Estamos saindo de uma Era Industrial para uma Era Digital, onde muito se fala em Indústria 4.0, Saúde 4.0 e Educação 4.0 – que compreendem a digitalização de inúmeros processos industriais. Essas terminologias estão ligadas à mudança paradigmática. Vivemos um momento em que pessoas começam a perceber que o mundo está mudando conforme previsto nos anos 1980 e 1990.
Como sempre me interessei por ciência, matemática e raciocínio lógico, a escolha pela computação foi uma decisão natural para mim. Ao definir essa carreia, tive a oportunidade de estudar e desenvolver pesquisas na UFRGS e, posteriormente, na Imperial College London, onde fiz doutorado na área de Lógica e Raciocínio Computacional. É por meio dessa jornada que adquiri conhecimento em temas como Inteligência Artificial, por exemplo.
A carreira acadêmica me levou à gestão: fui diretor e vice-diretor de faculdade, pró-reitor de pesquisa e trabalhei muito com inovação e com as relações que unem universidade, sociedade e empresa. Tudo isso me fez entender um pouco mais sobre a importância da conexão entre conhecimento, gestão e economia.
Sabe-se que o conhecimento está no centro da atividade econômica e toda essa área de computação e Inteligência Artificial é baseada em conhecimento, que posteriormente é transformado em inovação, novas tecnologias, serviços e produtos. Perceba que isso tem implicações em todas as áreas econômicas: da agricultura à indústria aeroespacial.
Atualmente, não existe uma área da economia que não seja afetada por essa tecnologia e percebemos o quanto isso é impactante quando áreas que eram vistas com certo ceticismo e dúvida, como a própria IA, hoje passam a atrair mercados, pessoas, profissionais e debates profundos. De fato, não se tratava de ficção científica. Pelo contrário, essa é uma área que transformou a ciência, criando oportunidades econômicas para bilhões de pessoas.
SD – Os seus estudos na área de Inteligência Artificial começaram antes do ano 2000. Por que só agora, duas décadas depois, o mundo tem olhado para esse tema?
LL – O objetivo de construir máquinas inteligentes, capazes de ajudar os seres humanos, é muito antigo. Se formos pensar em pesquisadores de séculos atrás como, por exemplo, o matemático francês Blaise Pascal (1623-1662) ou Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), percebemos que essa ideia sempre existiu. Entretanto, foi nos anos 1940 que Alan Turing definiu o conceito de Inteligência de Máquina, em um dos primeiros artigos publicados sobre o tema.
Já em 1956, ocorreu uma conferência organizada por alguns luminares da Inteligência Artificial, entre eles Marvin Minsky – que foi consultor do filme 2001– Uma Odisseia no Espaço, lançado em 1968. Esses acontecimentos nos fazem perceber que a IA possui uma história no mundo científico acadêmico de mais de 60 anos. O termo Inteligência Artificial foi cunhado em 1956 por John McCarthy e durante todas essas décadas houve períodos de mais credibilidade na tecnologia e outros em que se dizia que a IA não teria impacto algum em nossa sociedade.
Nos anos de 1960, cientistas e pesquisadores trabalhavam com o objetivo de construir programas de xadrez que vencessem grandes campeões. E, foi em 1997, que Garry Kasparov, o maior jogador de xadrez da história, perdeu uma série de partidas contra o sistema Deep Blue da IBM. Nessa época, demonstrou-se que era possível construir um sistema capaz de ganhar de um grande especialista humano, naquele que é conhecido como um jogo ilustrativo da inteligência humana.
SD – Então, na década de 1990, a Inteligência Artificial já era bastante discutida no ambiente acadêmico?
LL – Durante os anos 1990, a área de redes neurais artificiais ainda era vista com muito ceticismo. Os próprios pesquisadores não acreditavam no potencial a ser explorado nesse ramo. Entretanto, a partir de 2005, um grupo liderado pelo professor Geoffrey Hilton, publicou uma série de artigos que mostravam que as redes neurais são a base do aprendizado profundo (Deep Learning), uma área bastante conhecida nos dias atuais.
Portanto, essas abordagens sempre foram muito promissoras, principalmente para o reconhecimento e a classificação de imagens, voz e mecanismos de tradução automática. Enfim, existem inúmeras aplicações que integram essa lista como, por exemplo, o processamento de linguagem natural e o reconhecimento de padrões. Esse cenário inclusive resultou em uma explosão de interesse na área de redes neurais artificiais no mundo acadêmico (2006) e, anos mais tarde, na comunidade empresarial (2010).
Posteriormente a isso, o mercado começou a demonstrar interesse em transformar esse conhecimento em negócios, principalmente uma empresa chamada DeepMind – startup inglesa adquirida pela Google em 2014 – que desenvolveu uma série de jogos, onde sistemas apresentavam um desempenho muito superior ao ser humano. Um episódio marcante desse período ocorreu em 2016, em uma famosa partida do jogo Go, onde o sistema de Inteligência Artificial baseado em aprendizado profundo venceu Lee Se-Dol, um grande campeão asiático.
SD – Quais foram os principais impactos oriundos desse acontecimento?
LL – Esse movimento chamou muito a atenção da Ásia, especialmente da China e, por consequência, esses países passaram a investir ainda mais fortemente em Inteligência Artificial. Os resultados surpreendentes da última década mostraram que a IA teria um impacto expressivo em vários domínios. Sendo assim, grandes empresas (Big Techs) passaram a adotar técnicas de Inteligência Artificial para reconhecimento e classificação de imagens, computação visual e de tradução de línguas, mas também na classificação de informações, usuários e sistemas de recomendação.
Por conta disso, quando navegamos por um site de uma determinada empresa de comércio eletrônico, automaticamente nos é recomendado aquilo que tem a ver como os nossos grupos de interesse. É por essa razão que os mecanismos de sugestões de amigos ou informações do Facebook e outras redes e mídias sociais são tão eficientes, o que comprova a teoria de que as técnicas de IA para análise de dados são extremamente eficazes.
A consequência disso tudo é o despertar das empresas de tecnologia de grande porte, que começaram a manifestar um grande interesse comercial nas inúmeras aplicações da Inteligência Artificial, que rapidamente passou a demonstrar um impacto significativo no setor financeiro e cultural. Já nos últimos anos, o impacto passou a ser percebido em todos os setores da nossa vida.
SD – Podemos afirmar então que a Inteligência Artificial é a Inteligência de Máquina?
LL – Cada autor possui uma definição. Existe a Inteligência Natural, que é a demonstrada por seres humanos ou por ‘seres vivos’ e existe a Inteligência de Máquina, demonstrada por máquinas que possuem habilidades e funções cognitivas similares àquelas que a mente humana ou que a mente dos animais possui: capacidade de aprendizado, de resolver problemas, de raciocínio e de fazer inferências sobre dados e informações.
A IA é a inteligência demonstrada por máquinas, não necessariamente apenas computadores. Também podemos pensar em veículos autônomos e outros sistemas inteligentes que, no fundo, são considerados computadores pois possuem um mecanismo de computação. Atualmente, um carro autônomo é composto por uma série de componentes eletrônicos de pequenos computadores que controlam diversas funções desse veículo, seja para questões de navegação ou frenagem.
Em um futuro próximo, esses veículos terão uma capacidade computacional muito significativa e um funcionamento que permite comando de voz, assim como os assistentes que já nos ajudam no dia a dia – Alexa e Siri – e que aprendem diariamente com os nossos hábitos. Porém, existe uma diferença importante, os veículos autônomos precisam aprender a lidar com o ambiente, ou seja, com um sistema aberto, enquanto a grande maioria dos robôs interagem em sistemas fechados.
No ambiente, um veículo autônomo terá que assimilar informações, ocorrências e situações que nunca viu antes. E, por isso, esse tipo de inovação é tão desafiante. Os computadores hoje em dia se apresentam de diversas formas. Um satélite também é um computador que está no espaço, captando e processando informação para enviar dados ao planeta Terra.
SD – O Machine Learning diz respeito a esse aprendizado diário das máquinas?
LL – O Machine Learning é uma área muito importante da Inteligência Artificial, que alcançou ampla visibilidade nos últimos dez anos. As técnicas de Deep Learning das redes neurais profundas auxiliam na construção de sistemas que possuem a capacidade de evoluir, aprender e adquirir experiência, por meio do uso de dados e de informações obtidas no ambiente.
Sendo assim, torna-se viável construir um modelo de realidade onde é possível ‘treinar’ um sistema. Imagine um grande volume de imagens de rostos de pessoas ou de imagens de animais, por exemplo. Com os algoritmos de treinamento e de Aprendizado de Máquina, quando o sistema precisar reconhecer novos dados e imagens que nunca viu, ele será capaz de classificá-los corretamente de acordo com a experiência adquirida anteriormente.
Isso é possível porque o sistema acumula conhecimento ao longo do tempo, assim como o ser humano. Quando somos pequenos, as primeiras vezes que vemos animais como gato e cachorro, por exemplo, temos a tendência de confundir um com o outro. Porém, com o passar do tempo, aprendemos com as informações que recebemos dos nossos pais e amigos. Esse aprendizado nos permite criar um mecanismo de classificação que nos ajuda a reconhecer os animais.
O mesmo acontece com os sistemas de Aprendizado de Máquina. Entretanto, são várias as habilidades cognitivas que nós temos e que queremos construir também nos sistemas de IA, como a capacidade de se adaptar, de utilizar linguagem com significado e sentido, e de resolver problemas complexos. Temos muito o que trabalhar para ter um sistema tão inteligente quanto o ser humano. Ou seja, é preciso ir além do reconhecimento de padrões. É preciso construir sistemas inteligentes que mostrem também capacidade de raciocínio, de percepção e autonomia em um determinado ambiente.
SD – Que outras subáreas da Inteligência Artificial, além de Machine Learning, poderíamos destacar?
LL – Raciocínio e resolução de problemas são subáreas da Inteligência Artificial. Assim como a capacidade de planejamento, processamento de linguagem natural, tradução e comunicação. Não é apenas por aprendizado que se resolvem questões, existe toda uma parte de semântica e representação do conhecimento e da linguagem. Tudo isso faz parte da área de Inteligência Artificial e, idealmente, um sistema inteligente precisa saber se comunicar.
A robótica, por exemplo, depende muito da percepção do ambiente, da visão, de como os robôs manipulam e transformam objetos, como se movimentam fisicamente. Existe toda uma preocupação para que eles tenham os movimentos mais naturais possíveis. Além das questões de afetividade, emoções e sentimentos que os sistemas demonstram, aliados ao raciocínio lógico, matemático e normativo, por exemplo.
Isso vai muito além do aprendizado. O aprendizado é uma das habilidades cognitivas mais proeminentes porque atualmente temos técnicas que lidam com um grande volume de dados e muitas organizações, empresas e governos precisam resolver problemas baseados nos dados que possuem. Por essas razões, a área de Machine Learning tem tanta visibilidade nos dias de hoje.
SD – Pelos debates sobre a área e até mesmo pelos filmes que povoam o nosso imaginário, parece que a sociedade tem muito receito da IA e dos robôs. Esse medo tem fundamento?
LL – O medo está ligado à questão da singularidade, de construir sistemas que se tornem mais inteligentes do que o ser humano em muitas atividades e, eventualmente, que eles possam nos substituir. Mas, o que temos percebido, é que muitas das atividades rotineiras e repetitivas estão sendo atribuída à robôs e isso é algo positivo, já que ninguém gosta de passar oito horas por dia martelando um prego na mesma posição ou assinando e carimbando um formulário durante anos.
Na verdade, percebemos que os sistemas têm demonstrado algumas capacidades e habilidades de resolver problemas que tipicamente eram resolvidos por seres humanos como, por exemplo, a análise de documentos legais e administrativos. Além disso, temos também um crescimento muito significativo da robotização da indústria. Atualmente, uma fábrica de automóveis tem uma quantidade gigantesca de robôs e eles realmente substituíram pessoas que faziam tarefas industriais repetitivas (soldagem, parafusagem e dobras).
Os sistemas são mais rápidos na construção de correlações e na associação de informações de determinadas variáveis em grandes volumes de dados. Mas eles, ainda não possuem habilidades integradas como visão, percepção, entendimento da linguagem, capacidade de raciocínio e planejamento em um único sistema/robô.
O que temos são aplicações extremamente especificas e surpreendentes, capazes de analisar documentos jurídicos, elaborar sínteses e jurisprudência, que auxiliam advogados em determinadas atividades, por exemplo. Perceba que esse movimento também tem se espalhado para outras áreas.
Houve uma época que se achava que os sistemas de reconhecimento de imagens iriam substituir os radiologistas porque a precisão de alguns sistemas era superior à dos seres humanos. O que vimos é que continuamos tendo radiologistas em nossa sociedade e que esses profissionais utilizam esses sistemas de processamento de imagens para auxiliar em diagnósticos específicos. Na Web Summit 2021, Garry Kasparov ressaltou que “o futuro é o ser humano trabalhando com as máquinas”. As máquinas não irão nos substituir em tudo, mas cada vez mais iremos interagir com computadores e com Inteligência Artificial.
SD – Sabemos que países como Estados Unidos e China têm se destacado na área de Inteligência Artificial. Como o Brasil se posiciona nesse cenário global?
LL – O centro da nova economia são as pessoas: com muito talento, capacidade, educação e formação científica. Isso é algo que precisamos aprimorar em nosso país. China e Estados Unidos têm uma grande vantagem competitiva porque perceberam antes que a Inteligência Artificial é o futuro, logo passaram a investir pesado nessas áreas.
Esses países são as duas grandes potências do setor de IA, tanto em questões de mercado quanto em indicadores acadêmicos (formação de pessoas e publicações de artigos científicos). Entretanto, alguns países europeus também possuem um impacto muito significativo como Inglaterra e Alemanha. Infelizmente, o Brasil tem uma comunidade de IA pequena, mas existe um grande interesse das pessoas em compreender o porquê dessa área ser tão relevante.
Temos um número baixo de profissionais que atuam em Inteligência Artificial. Por isso, precisamos acelerar a formação na área de Ciência da Computação, já que não será possível se tornar um especialista aprendendo uma técnica específica (Aprendizado de Máquina). Essa é uma área complexa, que está relacionada com outras áreas técnicas e que precisa ser trabalhada em larga escala, durante um longo prazo.
SD – Qual o papel da educação nesse contexto?
LL – Esse é o momento de pensar em uma educação que reforme a nossa formação. O ensino médio e fundamental já deveria incluir disciplinas de Ciência da Computação no currículo escolar e isso não significa comprar computadores e colocá-los em sala de aula. O raciocínio computacional não tem a ver somente com a compra de equipamentos, essa é a parte mais fácil e barata.
Na China, a educação em Ciência da Computação já é disseminada há muitos anos e, nos Estados Unidos esse cenário tem crescido a passos largos, com a adoção da disciplina como componente curricular. Precisamos investir na educação não apenas no ensino superior. A educação deve passar por um ensino médio moderno e de alta qualidade, visto que começar a aprender sobre computação apenas no ensino superior é um pouco tarde.
Eu penso que o Brasil possui uma vantagem competitiva importante que é o tamanho da sua população. Muito melhor um país com 200 milhões de habitantes, do que um país pequeno que não tem escala na economia global. Um fator negativo, principalmente no caso do Rio Grande do Sul, é que a população não está crescendo o suficiente. Ao contrário do que alguns pensam, a maior fonte de riqueza dos países, das cidades e dos Estados são as pessoas.
SD – Como você enxerga a relação entre Inteligência Artificial e LGPD?
LL – Para a maior parte das pessoas, inclusive para os legisladores, nós estamos lidando com uma nova realidade, uma nova tecnologia que as pessoas possuem pouco conhecimento. Existe uma grande preocupação, acompanhada por vezes de um mau entendimento de como lidar e regular a Inteligência Artificial. Se isso fosse feito hoje, teríamos um número mínimo de princípios éticos para ajudar a garantir a privacidade e a segurança das pessoas, levando em conta questões de proteção de direitos individuais, preconceitos, vieses e direitos humanos básicos.
O segundo ponto é que qualquer regulamentação que não perceba que essa é uma tecnologia que evolui muito rápido, pode ser uma regulamentação que, em um curto espaço de tempo, irá caducar pela constante evolução tecnológica. O que nós estamos presenciando é um desafio que se apresenta não só do ponto de vista social e tecnológico, mas também do ponto de vista da normatização, que talvez nos remeta a uma mudança na forma como construímos as próprias regulações e legislações.
Se vamos construir legislações para tecnologias que evoluem e mudam anualmente, esse desafio se apresenta de uma forma muito maior para aqueles que legislam e para aqueles que consultam os cientistas e técnicos. Por isso, temos que trabalhar com um conjunto de princípios mínimos, que garantam proteção aos valores da sociedade e ao ser humano em sua individualidade. E, no caso da LGPD, que garanta um melhor uso dos dados.
SD – A forma como nos relacionamos com os nossos dados é influenciada por questões culturais?
LL – No Brasil, se eu for numa farmácia ou restaurante, serei questionado sobre o meu CPF e, percebemos que as pessoas facilmente fornecem essas informações. Vivemos em um país onde os nossos dados estão divulgados em vários lugares. Talvez, do ponto de vista cultural, seja necessário perceber melhor que tipo de dados devemos fornecer aos órgãos públicos e privados.
Será que nós precisamos mudar a nossa forma de compartilhar informações pessoais? Será que é correto questionar o número do RG, do CPF e até mesmo a data de nascimento de um cidadão? Quantas vezes cada um de nós já preencheu esses dados ou oralmente apresentou essas informações num supermercado ou loja de roupas. Como vamos legislar sobre a proteção de dados se temos uma cultura de ‘auto exposição’? São questionamentos que faço, para exemplificar que esse cenário faz parte da nossa sociedade muito antes da IA e da LGPD entrarem em debate na sociedade.
Cada informação adicional que eu forneço a um determinado site ou organização é um dado pessoal que eu compartilho. E isso é um passo para que eu tenha fornecido informações sensíveis que liberam acesso a ainda mais dados. Não foi a IA ou a digitalização que nos expôs. Essa é uma questão cultural, visto que antigamente preenchíamos esses mesmos dados em papel.
A nossa sociedade precisa refletir sobre essas questões e sobre o nosso comportamento nas redes sociais, que também é diferente de outros países. No Brasil, temos o hábito de publicar fotos de pessoas com os seus filhos e isso nos deixa expostos para o bem e para o mal. Será que em outras culturas é igual? Não estou dizendo que é melhor ou pior, isso não é um julgamento, mas sim uma reflexão.
SD – Em 2021, a IA está ao alcance somente de grandes empresas e startups inovadoras, ou pequenos e médios negócios também podem se beneficiar da tecnologia?
LL – Essa tecnologia tem sido utilizada por muitos, em negócios diversos. Não são apenas empresas de grande porte que podem se beneficiar, visto que a sua utilização depende muito da visão de negócios do empreendedor e da organização. Existem empresas maiores que ainda não acreditam que essas tecnologias serão relevantes no seu domínio de atuação.
Percebemos que startups utilizam IA em vários setores, do agronegócio a indústria aeroespacial, passando pelo comércio e pelos serviços. É uma questão de posicionamento estratégico. Além disso, as técnicas estão mais disponíveis para todos. Com a hiper conectividade, temos o benefício de ter mais acesso ao conhecimento.
Somos um país que absorve conhecimento tecnológico de forma natural e não temos rejeição às novas tecnologias. Nossos empreendedores estão sempre estudando e buscando atualização. Por outro lado, existe um déficit de capital humano muito significativo nesse setor, que atinge todos os países do mundo, e isso pode prejudicar o desenvolvimento de negócios e da nossa economia.
SD – Se você tivesse que fazer uma previsão, acredita que em 2050 todos os negócios do Brasil já utilizarão Inteligência Artificial?
LL – Indiretamente todos os negócios serão impactados, seja por parceiros ou pela cadeia econômica em que estão inseridos. Eu diria que aqueles que não estiverem utilizando Inteligência Artificial simplesmente deixarão de existir. A Transformação Digital passa muito por uma essa mudança cultural, de perceber o momento presente.
Vivemos uma transição de paradigma da Era Industrial para a Era Digital. Quem perceber esse movimento primeiro será capaz de acelerar o seu processo de formação cultural e de educação da sua base de trabalho – investindo em capital humano. A contemporaneidade já apresenta uma necessidade de mudança e evolução. Nós não precisamos temer os robôs e a Inteligência Artificial, mas nós temos que urgentemente educar as pessoas para essa nova realidade.